9 de Agosto de 2014 às 20:15

Papai Valente...

Embora a sua valentia nunca lhe tenha rendido o "Nobel da Paz"; não foi capa de uma grande revista o país; tão pouco terá seu nome em algum logradouro público, todavia. Viveu com honestidade e retidão e foi "fiel no pouco". Por onde passou domou a vida x

PAPAI VALENTE...

Não tenho dúvida de que aquela foi a decisão mais esmagante que já me colocaram sob os ombros: Depois de um breve concílio familiar,  mamãe, meus  irmãos e sobrinhos,   viraram  para mim e a mana, Lúcia, com voz embargada, disseram: "Faça o que Deus colocar em seu coração"´Isto  significava reunir com a equipe médica, que, até então cuidara tão bem de meu pai, que  naquela altura  se encontrava na sobrevida na UTI do Hospital Escola de Uberaba. O terceiro  derrame cerebral, havia silenciado todo sinal de vida em seu cérebro . Seus olhos esverdeados, que se fechava sempre quando sorria, agora não abriria mais. No dizer de Elisa Lucinda: "Nesse dia, Deus deu uma saidinha e o vice era meu fraco" Toda terapia passou a ser inócua e  desnecessária . A chama que mantinha a  vida de papai, não estava  mais nele, vinha  somente dos  equipamentos da  unidade daquele   bom hospital. Desligar ou não os aparelhos?

Como encarei aquela  a missão? Não pergunte pra mim. Meus pés me levavam... Naquela manhã, não me pergunte se havia sol ou chuva  nas ruas de Uberaba. Não sei se pássaros  cantavam. Não sei se alguém me pediu um pedaço de pão durante  no caminho. Normalmente eu saberia. Naquela manhã, não. Desci  o Bairro Leblon, atravessei  o Bairro Abadia, com um turbilhão de lembranças   a me comprimir  o peito. Prosseguia  solitário e teimoso com inevitáveis  lágrimas  umedecendo os  olhos. .. Por mais que soubesse que a situação era irreversível, o que eu ia fazer, poderia , tecnicamente, ser outra coisa, mas para mim, na minha mente, aquilo  era  eu tirando  a vida de  meu próprio pai e pronto.

...Papai, paizão, paizinho, quem não tem lá  o seu.  Algumas de minhas lembranças mais acalentadoras me levam á localidade de Barra do Salitre.  Minha primeira infância, no segundo casamento de meu pai. Naquele tempo  eu só  tinha olhos para um herói. O homem que me apresentou a natureza, os conceitos  de vida  e  o vasto mundo: LOURIVAL UBALDO MAGALHÃES - "Lôro"  para os chegados. No final da tarde lá vinha aquele homem, com um cheirinho gostoso do trabalho. Logo se seguia o  delicioso  ritual. Auxiliávamos mamãe, para recepcionar bem aquele que havia passado  o dia todo fora. Alguém retirava as suas botinas. Outro lhe trazia os chinelos. Uma  xícara de café quente já chegava do  outro lado.  "Paiê, o moquito  me modeu aqui, ó", era  a  caçulinha  em seu colo tentando  exclusividade, mas tinha carinho e bronca para todos.  Mal esperávamos que   se refizesse  da liça, tomasse o seu banho cheiroso  e começasse  a contar as novidades do dia.

Não, voce não conheceu meu pai. Tinha um  humor, fora de série. Marcasse bobeira perto dele para voce ver.  Ganhava um apelido em ciminha e de acordo. Claro, as vezes  só a gente em casa sabia e curtia. Cheio de máximas, que só ele, tipo: "Barata esperta não atravessa galinheiro"  "Ou, invocado é pior do que louco"  "ôpa, alguém sapecou o cabo da facão por aqui"  "Cuidar de criação é melhor do que cuidar de gente" "Antes de matar a onça, não se faz negócio com o couro"

Com visita em casa ou sem visita,  toda cena  doméstica transcorria  na intimidade da cozinha, mais precisamente nas orlas de um fogão a lenha. A cozinha era um misto de sala de estar com um típico empório mineiro. Cacho  de banana dependurado, carne seca, réstia de alho, sob a mesa um forro  estampado, um queijo fresco, um bule esmaltado com cafezinho sempre quente.   Mantimentos para o ano todo na dispensa ao lado. Verduras  lá na horta de couve. Frutos  da época no pomar. Na cozinha,  as vezes, um jogo de truco com os amigos, um ponteado de violão no cair da tarde. E o rádio de pilha que trazia as  notícias para o gasto. "Esse  João Batista Figueiredo é metido a esperto, mas não chega aos pés de Getúlio Vargas." Esse é meu papai, sabe tudo. Falava  orgulhoso para mim mesmo.  De um assunto a outro. De repente, aquilo era quase imperceptível, a menção fortuita de algum nome feminino, fazia  com que minha mãe sutilmente se levantasse, para  atiçar as brasas, conferir  as panelas e mudar logo  o rumo da prosa.

Lá fora era como se as  estrelas descessem do céu  para  brincar  de bique no terreiro. E antes de dormir, icha! minha  imaginação voava que voava. "Vou pegar um destes bichinhos, colocar  numa caixinha de fósforo e amanhã durante o dia, quero descobrir  como ele acende esta luz na bundinha" ..." E se o forro do céu quebrar  e Deus cair em cima da gente?"  Engraçado, galo não tem pipiu". "Será se é pecado primo casar com prima?". Mistérios...mas o marulhar suave  de uma bica d’água , logo me fazia dormir.

Papai tinha  dignidade, respeito e  um senso de honestidade que vi em poucos. De vez em quando parecia com o fruto de algum  catira, mas não levava jeito.  Aquele  fusca branco, por exemplo e depois,  o  corcel  verde, na hora de vendê-los listava todos os defeitos dos carros. Acabava vendendo aquilo muito mal. Não sabia " passar a perna  nos outros"

 Mas, vantageiro e custosinho,  no melhor sentido, era papai. Caberia bem num romance de Guimarães Rosa, ou  Mário Palmério. Lembro-me daquele dia em que diante de um platéia de tios e sobrinhos, ele joga uma  sela sobre o dorso de uma cavalo ainda  e monta. O bicho salta, carvoveia  e meu pai valente que era, não caiu. Achei o máximo!  Em outra ocasião, no entanto, me dei muito  mal. Visitávamos um tio nas cercanias, eu  na garupa, segurando firme na cintura de papai, a primogênita, Marta, na cabeça do arreio. Hiii!, mas, vacilei  feio.  Justo no momento em que não poderia. Era um cavalo redomão (recém domado ) assustou com algo, saiu da estrada  dando pinotes, deixo a mão da cintura de meu pai para verificar se não havia esquecido uma  bendita borracha de estilingue que ganhei do meu primo. Não deu outra. O cavalo saltitou e levei um cambotão cinematográfico . Crec! Na queda, quebrei meu braço esquerdo. Papai, a princípio, não viu e   ficou  fulo, pois  foi difícil me recolocar na garupa, pois o bendito cavalo não parava. Era galope pra lá e pra cá, pisadas rente  de onde eu estava. Quando, porém , viu de fato o  meu braço todo inchado, nem sabia o que fazer para  amenizar a minha dor. Talvez  por isto, até hoje, não sou adepto de cavalgar.

Papai teve um amigo inseparável. Residindo na zonal rural e posteriormente na cidade, era indispensável o uso de  um chapéu de feltro, salvo engano, marca  Ramenzoni,  comprado com certeza  nas "Casas Manuel Nunes" . Nosso Indiana Jones da Barra do Salitre, era uma  espécie de veterinário na prática, cumpridor fiel da "Declaração Universal dos Direitos do Animal, Art. 3º - "Todo animal tem direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem. Se a morte de um animal for necessária, deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia."  Era um   boiadeiro saudosista,  falava sempre  sobre  os artefatos de couro do oficio, coisas como  guaiaca, coxonilho, gibão, baldrana, exceto o chicote,( que ele como um bom pai, delicadamente me  apresentou algumas vezes ) o resto entendi melhor de fabricação de ovo.

"Seu pai parece que comeu perna de cachorro, não pára em lugar nenhum" Dizia sua mãe e minha Vó- Mãe -Badia. Era mesmo. Tive um pai rural e urbano. Deixava  o nome limpo e saudade,  mas  as vezes amanhecia e não anoitecia no mesmo lugar. Falava  em  mudar  para Mato  Grosso, onde tinha um irmão, todavia, saiu da  Barra do Salitre para Uberaba, onde domava  um gado  bravo  mestiço de Guzerá/Nelore, na fazenda do amigo Netinho.  De lá, regressou para Patrocínio, onde foi pioneiro arregimentando turma no Fundo da Matriz, para as lavouras de café de José Calos Grossi. Muda depois  parar  Estrela do Sul. Volta. Reside no Município de Serra do Salitre.  Pouco tempo na fazenda do  Sr Generino de Castro. Vai para  São Benedito, propriedade do  Sr Alaor Ribeiro de Paiva, logo já residia na Fazenda Ouro Verde, próximo a cidade de  Romaria. Lá permaneceu muitos anos. Uberaba novamente. E , por fim,  a cidade de Monte Carmelo, onde trabalhou numa cooperativa, seu último  emprego, antes de se aposentar. Mesmo amando Patrocínio sua cidade natal,  no aconchego da "Capital da Telha"  fixou sua última  residência.

Enquanto papai  ciganava  na região, permaneci  a maioria dos anos com minha vô para estudar e isto  não nos manteve ausentes um do outro.("Sem estudo-dizia ele- a pessoa não é nada")  Eu e  meus irmãos, todas as vezes que dele precisamos  ele foi mais do que um pai. Foi  um amigo,um  irmão  em todos os momentos. Quando era menor de idade, precisei que ele  fosse lá em São Paulo, assinar um documento por mim numa editora, sem coré coré, não pensou duas vezes.  Por tudo isto, sem constrangimento, naquele dia , beijei  ternamente  a   sua testa  e lhe disse:  "Papai eu te amo". Ele respondeu: " Eu também te amo e admiro muito " Era um coração ali falando ao  outro. Sentimos uma paz e uma comunhão profunda.

Pois é...mas agora, estava chegando ao hospital onde decidiria desligar, ou, não, os aparelhos da  sobrevida... È...nem sempre a vida imita a arte.  Um dos filmes mais emocionante que já assisti fala da  bravura do amor de um pai: Em  "Um Ato de Coragem",Denzel Washington é John  Q. Archibald,  trabalhador de uma fábrica e dedicado chefe de família. Sua esposa e seu filho são as alegrias de sua vida. Um dia, porém, seu garoto passa mal e é internado às pressas. Os exames revelam um problema grave no coração e precisa de um transplante urgente. Ocorre que esta é uma operação muito cara e o plano de saúde de John não cobre. Correndo contra o tempo e sem dinheiro para pagar a cirurgia, John procura a direção do hospital, órgãos governamentais e associações civis, coloca sua casa e tudo o que tem à venda. Mas, infelizmente, é em vão! O hospital vai mandar o garoto para casa e selar o seu destino. John, então, toma uma atitude radical: invade o setor de emergência do hospital, faz médicos e pacientes reféns, na tentativa de obrigá-los a realizar o transplante em seu filho. Logo o hospital está cercado pela imprensa, pelo público e pela polícia. Na mira dos atiradores de elite, John não sabe como tudo terminará, mas tem uma certeza: ele não enterrará seu filho!

Na vida real era tudo muito diferente. Esse pai do filme moveu céu e terra pelo filho. Eu,  o  filho da vida real, não tinha mais nada a fazer pelo pai e estava prestes a cometer "Um Ato de Covardia" Pisando no chão duro dessa realidade,  entro  no hospital, soube, logo que a equipe médica já havia comunicado com a familia. A  carruagem com destino ás manções eternas, já havia passado  por lá...

PAPAI VALENTE...

E assim, naquela tarde de 08 de Agosto de 1998, no cemitério de Uberaba, o pedreiro que reverentemente terminava seu trabalho, correu  um olhar enternecido sobre nós  e  nos surpreendeu com uma pergunta" "Alguém quer deixar alguma inscrição  neste  epitáfio?" Todos olharam para mim para escolher alguma frase. Num átimo, passou um curta-longo em minha mente sobre  a vida de meu velho.Não deu outra,  tasquei logo: "PAPAI VALENTE"

Embora a  sua valentia nunca lhe tenha rendido o "Nobel da Paz"; não foi capa de uma grande revista o país; tão pouco terá seu nome em algum logradouro público, todavia Viveu com honestidade e retidão e "foi fiel no pouco". Por onde passou, na zona rural ou na cidade, domou a vida xucra com leveza. Valente, sim.  Viveu com  a dignidade e a honra de um chefe de estado. Hoje de consciência tranquila, posso afirmar que não escolheria outro pai; e sei que ele não escolheria outro filho...