PAPAI VALENTE...
Não tenho dúvida de que aquela foi a decisão mais esmagante que já me colocaram sob os ombros: Depois de um breve concílio familiar, mamãe, meus irmãos e sobrinhos, viraram para mim e a mana, Lúcia, com voz embargada, disseram: "Faça o que Deus colocar em seu coração"´Isto significava reunir com a equipe médica, que, até então cuidara tão bem de meu pai, que naquela altura se encontrava na sobrevida na UTI do Hospital Escola de Uberaba. O terceiro derrame cerebral, havia silenciado todo sinal de vida em seu cérebro . Seus olhos esverdeados, que se fechava sempre quando sorria, agora não abriria mais. No dizer de Elisa Lucinda: "Nesse dia, Deus deu uma saidinha e o vice era meu fraco" Toda terapia passou a ser inócua e desnecessária . A chama que mantinha a vida de papai, não estava mais nele, vinha somente dos equipamentos da unidade daquele bom hospital. Desligar ou não os aparelhos?
Como encarei aquela a missão? Não pergunte pra mim. Meus pés me levavam... Naquela manhã, não me pergunte se havia sol ou chuva nas ruas de Uberaba. Não sei se pássaros cantavam. Não sei se alguém me pediu um pedaço de pão durante no caminho. Normalmente eu saberia. Naquela manhã, não. Desci o Bairro Leblon, atravessei o Bairro Abadia, com um turbilhão de lembranças a me comprimir o peito. Prosseguia solitário e teimoso com inevitáveis lágrimas umedecendo os olhos. .. Por mais que soubesse que a situação era irreversível, o que eu ia fazer, poderia , tecnicamente, ser outra coisa, mas para mim, na minha mente, aquilo era eu tirando a vida de meu próprio pai e pronto.
...Papai, paizão, paizinho, quem não tem lá o seu. Algumas de minhas lembranças mais acalentadoras me levam á localidade de Barra do Salitre. Minha primeira infância, no segundo casamento de meu pai. Naquele tempo eu só tinha olhos para um herói. O homem que me apresentou a natureza, os conceitos de vida e o vasto mundo: LOURIVAL UBALDO MAGALHÃES - "Lôro" para os chegados. No final da tarde lá vinha aquele homem, com um cheirinho gostoso do trabalho. Logo se seguia o delicioso ritual. Auxiliávamos mamãe, para recepcionar bem aquele que havia passado o dia todo fora. Alguém retirava as suas botinas. Outro lhe trazia os chinelos. Uma xícara de café quente já chegava do outro lado. "Paiê, o moquito me modeu aqui, ó", era a caçulinha em seu colo tentando exclusividade, mas tinha carinho e bronca para todos. Mal esperávamos que se refizesse da liça, tomasse o seu banho cheiroso e começasse a contar as novidades do dia.
Não, voce não conheceu meu pai. Tinha um humor, fora de série. Marcasse bobeira perto dele para voce ver. Ganhava um apelido em ciminha e de acordo. Claro, as vezes só a gente em casa sabia e curtia. Cheio de máximas, que só ele, tipo: "Barata esperta não atravessa galinheiro" "Ou, invocado é pior do que louco" "ôpa, alguém sapecou o cabo da facão por aqui" "Cuidar de criação é melhor do que cuidar de gente" "Antes de matar a onça, não se faz negócio com o couro"
Com visita em casa ou sem visita, toda cena doméstica transcorria na intimidade da cozinha, mais precisamente nas orlas de um fogão a lenha. A cozinha era um misto de sala de estar com um típico empório mineiro. Cacho de banana dependurado, carne seca, réstia de alho, sob a mesa um forro estampado, um queijo fresco, um bule esmaltado com cafezinho sempre quente. Mantimentos para o ano todo na dispensa ao lado. Verduras lá na horta de couve. Frutos da época no pomar. Na cozinha, as vezes, um jogo de truco com os amigos, um ponteado de violão no cair da tarde. E o rádio de pilha que trazia as notícias para o gasto. "Esse João Batista Figueiredo é metido a esperto, mas não chega aos pés de Getúlio Vargas." Esse é meu papai, sabe tudo. Falava orgulhoso para mim mesmo. De um assunto a outro. De repente, aquilo era quase imperceptível, a menção fortuita de algum nome feminino, fazia com que minha mãe sutilmente se levantasse, para atiçar as brasas, conferir as panelas e mudar logo o rumo da prosa.
Lá fora era como se as estrelas descessem do céu para brincar de bique no terreiro. E antes de dormir, icha! minha imaginação voava que voava. "Vou pegar um destes bichinhos, colocar numa caixinha de fósforo e amanhã durante o dia, quero descobrir como ele acende esta luz na bundinha" ..." E se o forro do céu quebrar e Deus cair em cima da gente?" Engraçado, galo não tem pipiu". "Será se é pecado primo casar com prima?". Mistérios...mas o marulhar suave de uma bica d’água , logo me fazia dormir.
Papai tinha dignidade, respeito e um senso de honestidade que vi em poucos. De vez em quando parecia com o fruto de algum catira, mas não levava jeito. Aquele fusca branco, por exemplo e depois, o corcel verde, na hora de vendê-los listava todos os defeitos dos carros. Acabava vendendo aquilo muito mal. Não sabia " passar a perna nos outros"
Mas, vantageiro e custosinho, no melhor sentido, era papai. Caberia bem num romance de Guimarães Rosa, ou Mário Palmério. Lembro-me daquele dia em que diante de um platéia de tios e sobrinhos, ele joga uma sela sobre o dorso de uma cavalo ainda e monta. O bicho salta, carvoveia e meu pai valente que era, não caiu. Achei o máximo! Em outra ocasião, no entanto, me dei muito mal. Visitávamos um tio nas cercanias, eu na garupa, segurando firme na cintura de papai, a primogênita, Marta, na cabeça do arreio. Hiii!, mas, vacilei feio. Justo no momento em que não poderia. Era um cavalo redomão (recém domado ) assustou com algo, saiu da estrada dando pinotes, deixo a mão da cintura de meu pai para verificar se não havia esquecido uma bendita borracha de estilingue que ganhei do meu primo. Não deu outra. O cavalo saltitou e levei um cambotão cinematográfico . Crec! Na queda, quebrei meu braço esquerdo. Papai, a princípio, não viu e ficou fulo, pois foi difícil me recolocar na garupa, pois o bendito cavalo não parava. Era galope pra lá e pra cá, pisadas rente de onde eu estava. Quando, porém , viu de fato o meu braço todo inchado, nem sabia o que fazer para amenizar a minha dor. Talvez por isto, até hoje, não sou adepto de cavalgar.
Papai teve um amigo inseparável. Residindo na zonal rural e posteriormente na cidade, era indispensável o uso de um chapéu de feltro, salvo engano, marca Ramenzoni, comprado com certeza nas "Casas Manuel Nunes" . Nosso Indiana Jones da Barra do Salitre, era uma espécie de veterinário na prática, cumpridor fiel da "Declaração Universal dos Direitos do Animal, Art. 3º - "Todo animal tem direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem. Se a morte de um animal for necessária, deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia." Era um boiadeiro saudosista, falava sempre sobre os artefatos de couro do oficio, coisas como guaiaca, coxonilho, gibão, baldrana, exceto o chicote,( que ele como um bom pai, delicadamente me apresentou algumas vezes ) o resto entendi melhor de fabricação de ovo.
"Seu pai parece que comeu perna de cachorro, não pára em lugar nenhum" Dizia sua mãe e minha Vó- Mãe -Badia. Era mesmo. Tive um pai rural e urbano. Deixava o nome limpo e saudade, mas as vezes amanhecia e não anoitecia no mesmo lugar. Falava em mudar para Mato Grosso, onde tinha um irmão, todavia, saiu da Barra do Salitre para Uberaba, onde domava um gado bravo mestiço de Guzerá/Nelore, na fazenda do amigo Netinho. De lá, regressou para Patrocínio, onde foi pioneiro arregimentando turma no Fundo da Matriz, para as lavouras de café de José Calos Grossi. Muda depois parar Estrela do Sul. Volta. Reside no Município de Serra do Salitre. Pouco tempo na fazenda do Sr Generino de Castro. Vai para São Benedito, propriedade do Sr Alaor Ribeiro de Paiva, logo já residia na Fazenda Ouro Verde, próximo a cidade de Romaria. Lá permaneceu muitos anos. Uberaba novamente. E , por fim, a cidade de Monte Carmelo, onde trabalhou numa cooperativa, seu último emprego, antes de se aposentar. Mesmo amando Patrocínio sua cidade natal, no aconchego da "Capital da Telha" fixou sua última residência.
Enquanto papai ciganava na região, permaneci a maioria dos anos com minha vô para estudar e isto não nos manteve ausentes um do outro.("Sem estudo-dizia ele- a pessoa não é nada") Eu e meus irmãos, todas as vezes que dele precisamos ele foi mais do que um pai. Foi um amigo,um irmão em todos os momentos. Quando era menor de idade, precisei que ele fosse lá em São Paulo, assinar um documento por mim numa editora, sem coré coré, não pensou duas vezes. Por tudo isto, sem constrangimento, naquele dia , beijei ternamente a sua testa e lhe disse: "Papai eu te amo". Ele respondeu: " Eu também te amo e admiro muito " Era um coração ali falando ao outro. Sentimos uma paz e uma comunhão profunda.
Pois é...mas agora, estava chegando ao hospital onde decidiria desligar, ou, não, os aparelhos da sobrevida... È...nem sempre a vida imita a arte. Um dos filmes mais emocionante que já assisti fala da bravura do amor de um pai: Em "Um Ato de Coragem",Denzel Washington é John Q. Archibald, trabalhador de uma fábrica e dedicado chefe de família. Sua esposa e seu filho são as alegrias de sua vida. Um dia, porém, seu garoto passa mal e é internado às pressas. Os exames revelam um problema grave no coração e precisa de um transplante urgente. Ocorre que esta é uma operação muito cara e o plano de saúde de John não cobre. Correndo contra o tempo e sem dinheiro para pagar a cirurgia, John procura a direção do hospital, órgãos governamentais e associações civis, coloca sua casa e tudo o que tem à venda. Mas, infelizmente, é em vão! O hospital vai mandar o garoto para casa e selar o seu destino. John, então, toma uma atitude radical: invade o setor de emergência do hospital, faz médicos e pacientes reféns, na tentativa de obrigá-los a realizar o transplante em seu filho. Logo o hospital está cercado pela imprensa, pelo público e pela polícia. Na mira dos atiradores de elite, John não sabe como tudo terminará, mas tem uma certeza: ele não enterrará seu filho!
Na vida real era tudo muito diferente. Esse pai do filme moveu céu e terra pelo filho. Eu, o filho da vida real, não tinha mais nada a fazer pelo pai e estava prestes a cometer "Um Ato de Covardia" Pisando no chão duro dessa realidade, entro no hospital, soube, logo que a equipe médica já havia comunicado com a familia. A carruagem com destino ás manções eternas, já havia passado por lá...
PAPAI VALENTE...
E assim, naquela tarde de 08 de Agosto de 1998, no cemitério de Uberaba, o pedreiro que reverentemente terminava seu trabalho, correu um olhar enternecido sobre nós e nos surpreendeu com uma pergunta" "Alguém quer deixar alguma inscrição neste epitáfio?" Todos olharam para mim para escolher alguma frase. Num átimo, passou um curta-longo em minha mente sobre a vida de meu velho.Não deu outra, tasquei logo: "PAPAI VALENTE"
Embora a sua valentia nunca lhe tenha rendido o "Nobel da Paz"; não foi capa de uma grande revista o país; tão pouco terá seu nome em algum logradouro público, todavia Viveu com honestidade e retidão e "foi fiel no pouco". Por onde passou, na zona rural ou na cidade, domou a vida xucra com leveza. Valente, sim. Viveu com a dignidade e a honra de um chefe de estado. Hoje de consciência tranquila, posso afirmar que não escolheria outro pai; e sei que ele não escolheria outro filho...