(Foto: Papai, mais ou menos aos 18 anos) Algumas de minhas lembranças mais acalentadoras me levam á localidade de Barra do Salitre. Minha primeira infância, no segundo casamento de meu pai. Naquele tempo eu só tinha olhos para um herói. O homem que me apresentou a natureza, os conceitos de vida e o vasto mundo: LOURIVAL UBALDO MAGALHÃES – “Lôro” para os chegados. No final da tarde lá vinha aquele homem, com um cheirinho gostoso do trabalho. Logo seguia-se o delicioso ritual. Auxiliávamos mamãe, para recepcionar bem aquele que havia passado o dia todo fora. Alguém retirava as suas botinas. Outro trazia-lhe os chinelos. Uma xícara de café quente já chegava do outro lado. “Paiê, o pelongo me modeu aqui, ó”, era a caçulinha em seu colo tentando exclusividade, mas tinha carinho e bronca para todos. Mal esperávamos que se refizesse da liça, tomasse o seu banho cheiroso e começasse a contar as novidades do dia. Não, voce não conheceu meu pai. Tinha um humor, fora de série. Marcasse bobeira perto dele para voce ver. Ganhava um apelido em ciminha e de acordo. Claro, só a gente em casa sabia e curtia. Cheio de máximas, tipo: “Barata esperta não atravessa galinheiro” “Ou, invocado é pior do que louco” “ôpa, alguém sapecou o cabo da facão por aqui” “Cuidar de criação é melhor do que cuidar de gente” “Antes de matar a onça, não se faz negócio com o couro”
Com visita em casa ou sem visita, toda cena doméstica transcorria na intimidade da cozinha, mais precisamente nas orlas de um fogão a lenha. A cozinha era um misto de sala de estar com um típico empório mineiro. Cacho de banana dependurado, carne seca, réstia de alho, sob a mesa um forro estampado, um queijo fresco, um bule esmaltado com cafezinho sempre quente. Mantimentos para o ano todo na dispensa ao lado. Verduras alí na horta de couve. Frutos da época no pomar. Na cozinha, as vezes, um jogo de truco com os amigos, um ponteado de violão no cair da tarde. E o rádio de pilha que trazia as notícias para o gasto. “Esse João Batista Figueiredo é metido a esperto, mas não chega aos pés de Getúlio Vargas.” Esse papai sabe tudo. Falava orgulhoso para mim mesmo. De um assunto a outro. Quase imperceptivel, mas a menção fortuita de algum nome feminino, fazia com que minha mãe sutilmente se levantasse, para atiçar as brasas, conferir as panelas e mudar o rumo da prosa.Tentava trazê-lo nas rédeas curtas. Eu disse, tentava.
Lá fora era como se as estrelas descessem do céu para brincar de bique no terreiro. Antes de dormir a minha imaginação voava que voava. “Vou pegar um destes bichinhos,(vaga-lume) colocar numa caixinha de fósforo e amanhã durante o dia, quero descobrir como ele acende esta luz na bundinha” ...“ E se o forro do céu quebrar e Deus cair em cima da gente ”. Engraçado, galo não tem pipiu” Será se é pecado primo casar com prima”. Mistérios...mas o marulhar suave de uma bica d’água, logo me fazia dormir.
Papai tinha dignidade, respeito e um senso de honestidade que vi em poucos. De vez em quando aparecia com o fruto de algum catira, mas não levava jeito para isto. Aquele fusca branco, por exemplo e depois, o corcel verde, na hora de vendê-los listava todos os defeitos dos carros. Acabava vendendo mal pra dedéu. Não sabia “ passar a perna nos outros”
Mas, vantageiro e custosinho, no melhor sentido, era papai. Caberia bem num romance de Guimarães Rosa. Poderia muito bem até ser o 10º campanheiro da célebre comitiva de 1952, quando escreveu o "Grande Sertão: Veredas".(Foto: O Cruzeiro) Lembro-me daquele dia em que diante de um platéia de tios e sobrinhos, ele joga uma cela sobre o dorso de uma cavalo xucro e monta. O bicho salta, carvoveia e meu pai valente não caiu. Achei o máximo. Em outra ocasião no entanto, me dei muito mal. Visitávamos um tio nas cercanias. Eu na garupa, segurando firme na cintura de papai, a primogênita, Marta, na cabeça do arreio. Hiii, mas, vacilei feio. Justo no momento em que não podia. Era um cavalo redomão (recém domado por papai ) assustou com algo, saiu da estrada dando pinotes, deixo uma mão para verificar se não havia esquecido uma bendita borracha de estilingue que ganhei do meu primo. Não deu outra. O cavalo saltitou e levei um cambotão clássico. Quebrei meu braço esquerdo. Papai, a princípio ficou uma fera, como foi difícil me recolocar na garupa, pois o cavalo não parava. Mas quando de fato, viu o meu braço todo inchado, nem sabia o que fazer para amenizar a minha dor. Talvez por isto, até hoje, detesto isto de andar a cavalo.
Papai teve um amigo inseparável. Residindo na zonal rural e posteriormente na cidade, era indispensável o uso de um chapéu de feltro, salvo engano, marca Ramenzoni, comprado com certeza nas “Casas Manuel Nunes” . Nosso Indiana Jones da Barra do Salitre, era uma espécie de veterinário na prática, cumpridor fiel da “Declaração Universal dos Direitos do Animal, Art. 3º - “Todo animal tem direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem. Se a morte de um animal for necessária, deve ser instantânea, indolor e não geradora de angústia.” Era um boiadeiro saudosista, falava sempre sobre os artefatos de couro do ofício, coisas como guaiaca, coxonilho, gibão, baldrana, exceto o chicote,( que ele como um bom pai, delicadamente me apresentou algumas vezes ) o resto conheço melhor de fabricação de ovo.
“Seu pai parece que comeu perna de cachorro, não pára em lugar nenhum” Dizia sua mãe e minha Vó- Mãe –Badia. Era mesmo. Tive um pai rural e urbano. Deixava o nome limpo e saudade, mas as vezes amanhecia e não anoitecia no mesmo lugar. Falava em mudar para Mato Grosso, onde tinha um irmão, todavia, saiu da Barra do Salitre para Uberaba, onde domava um gado selvagem mestiço de Guzerá/Nelore. Quase perdeu a vida em muitas situações nesta empreitada. De lá, regressou para Patrocínio, onde foi pioneiro arregimentando turma no Fundo da Matriz, para as lavouras de café de José Calos Grossi. Muda depois parar Estrela do Sul. (Lá nem cheguei a visitá-los)Volta. Reside no Município de Serra do Salitre. Pouco tempo na fazenda do Sr Generino de Castro. Vai para São Benedito, propriedade do Sr Alaor Ribeiro de Paiva, logo já residia na Fazenda Ouro Verde, próximo a cidade de Romaria. Lá permaneceu muitos anos. Uberaba novamente. E , por fim, na cidade de Monte Carmelo, onde trabalhou numa cooperativa, seu último emprego, antes de se aposentar. Mesmo amando Patrocínio sua cidade natal, no aconchego da “Capital da Telha” fixou sua última residência.
Enquanto papai ciganava na região, permaneci a maioria dos anos com minha vô para estudar e isto não nos manteve ausentes um do outro. (“Sem estudo-dizia ele- a pessoa não é nada”) Eu e meus irmãos, todas as vezes que dele precisamos ele foi mais do que um pai. Foi um amigo,um irmão em todos os momentos. Quando era menor de idade, precisei que ele fosse lá em São Paulo, assinar um documento por mim numa editora, sem coré coré, não pensou duas vezes.Enfrentou aquele inferninho chamado São Paulo, por mim. Por tudo isto, sem constrangimento, naquele dia, beijei ternamente a sua testa e lhe disse: “Papai eu te amo” Ele respondeu: “ Eu também te amo e admiro muito ” Era um coração ali falando com afeto a outro. Sentimos uma paz profunda e uma comunhão indescrítivel.
Mas, naquela data fatídica, caminhava com uma dor lacinante em minha alma. Ia ao hospital decidir se desligava , ou, não, os aparelhos da sobrevida de meu pai...Enquanto seguia, levitando, fora de mim, lembrei-me de um dos filmes mais emocionante que já assisti. Falava da bravura do amor de um pai: “Um Ato de Coragem”, Denzel Washington é John Q. Archibald, trabalhador de uma fábrica e dedicado chefe de família. Sua esposa e seu filho são as alegrias de sua vida. Um dia, porém, seu garoto passa mal e é internado às pressas. Os exames revelam um problema grave no coração e precisa de um transplante urgente. Ocorre que esta é uma operação muito cara e o plano de saúde de John não cobre. Correndo contra o tempo e sem dinheiro para pagar a cirurgia, John procura a direção do hospital, órgãos governamentais e associações civis, coloca sua casa e tudo o que tem à venda. Mas, infelizmente, é em vão! O hospital vai mandar o garoto para casa e selar o seu destino. John, então, toma uma atitude radical: invade o setor de emergência do hospital, faz médicos e pacientes reféns, na tentativa de obrigá-los a realizar o transplante em seu filho. Logo o hospital está cercado pela imprensa, pelo público e pela polícia. Na mira dos atiradores de elite, John não sabe como tudo terminará, mas tem uma certeza: ele não enterrará seu filho!
A cena da vida real, pra mim, era tudo muito diferente. Esse pai do filme moveu céu e terra pelo filho. Eu, este filho, não tinha mais nada a fazer pelo pai. E desligar os aparelhos, para mim, era assassiná-lo com todas as letras. Pisando no chão duro dessa realidade, entro no hospital....Soube, logo que a equipe médica já havia comunicado com a familia...A carruagem com destino as mansões eternas, já havia passado por lá e levado meu pai.
E assim, naquela tarde de 08 de Agosto de 1998, no cemitério de Uberaba, o pedreiro que reverentemente terminava seu trabalho, ergueu o olhar enternecido e nos surpreendeu com uma pergunta “Alguém quer deixar alguma inscrição neste epitáfio?” Todos olharam para mim. Passou um curta em minha mente sobre a vida de meu velho. Tasquei logo: “PAPAI VALENTE”
(Na foto, papai quase cego, antes do letal 3º AVC ) É verdade que sua valentia nunca lhe rendeu o “Nobel da Paz”; não foi capa de nenhuuma grande revista no país; tão pouco terá seu nome em algum logradouro público, todavia “foi fiel no pouco”. Em casa e por onde passou, na roça ou na cidade, mereceu a dignidade e a honra de um chefe de estado. Hoje, de consciência tranquila, posso afirmar que não escolheria outro pai; e sei que ele não escolheria outro filho...
Tento domar a saudade xucra, ouvindo as canções que nosso boêmio caipira adorava: